terça-feira, março 06, 2007

Heróis de Carne e Osso


O seriado “Heroes”, que retrata o drama de pessoas comuns repentinamente transformados em super-humanos, mostra mais uma vez que a televisão já alcançou o cinema em criatividade e interesse – agora, na seara dos quadrinhos




A moda de super-heróis já vem fazendo sucesso nos cinemas há alguns anos – com resultados que variam do genial ao desastroso. A onda serviu para dar mais respeitabilidade e visibilidade aos quadrinhos, que hoje ninguém mais vê como “coisa de criança” se parecer ignorante, além de fornecer novos recursos para a cinematografia americana, que, há tempos sem roteiros que prestem, tem sobrevivido na base de adaptações, refilmagens, seqüências e “prequels” de tudo quanto é tipo. Quem acompanhou o Oscar de 2007 sabe do que eu estou falando.

Não foi fácil, é claro, transferir para o cinema um gênero tão intrinsecamente ligado à sua mídia original. Nesse aspecto, uma adaptação televisiva, apesar de trazer suas próprias dificuldades, traz também alguns recursos das hq’s que encontram melhor utilização na telinha, como o velho bordão “to be continued”, ou seja, dividir a história em vários capítulos que acabam sempre num clímax, fazendo o espectador esperar ansiosamente pela próxima edição.

Vencidos os primeiros obstáculos, descobriu-se que o filão era bastante lucrativo para todos os envolvidos.

Essa nova galinha dos ovos de ouro, no entanto, foi tão espremida pelos gananciosos produtores de Holywood que muitos já apontam o seu esgotamento. O seriado “Heroes” surge, assim, para tratar de um tema que já foi inventado, esgotado, reinventado e revolucionado várias vezes, não só nos gibis como, agora, nos cinemas – e, num território tão explorado, é impossível falar da série sem citar algumas de suas muitas influências ou cair no inevitável lugar-comum das comparações.

O enredo de “Heroes” é bastante simples: um grupo de pessoas, até então sem nada de especial, começa a descobrir poderes sobrenaturais, como levitação, regeneração, telecinese, etc., o que afetará não só suas vidas particulares, mas, eventualmente, o destino da espécie humana.

Muitos têm dito que a idéia de “Heroes” deve muito ao “Watchmen” de Alan Moore, a primeira “graphic novel” que conseguiu mostrar de maneira convincente como seria o mundo real se os super-heróis existissem de verdade. Na obra de Moore, não apenas os “poderes” dos heróis são bastante ordinários – um depende de tecnologia avançada, dois se destacam apenas pelo comportamento violento, e outro deve seu sucesso ao seu brilhante intelecto (e é o primeiro a perceber quão idiota é a idéia de um monte de adultos usando fantasias de carnaval, quando existem problemas mais urgentes, como a guerra fria, a serem resolvidos) – como também suas personalidades cheias de falhas, sendo os personagens inseguros, confusos, indiferentes, fascistas ou simplesmente psicóticos.

Realmente, há alguma semelhança. No entanto, parece-me que uma comparação mais pertinente - e óbvia - seria com os X-men originais. De fato, a idéia de seres humanos comuns, de várias raças, nacionalidades, etnias e culturas diferentes, descobrindo que super-poderes em seu código genético e juntando-se para combater o mal era a força original da equipe criada por Stan Lee e Jack Kirby, e consagrad por Chris Claremont, o que foi abertamente reaproveitado em “Heroes”.

O interessante é que, embora originalmente os X-men fossem uma equipe bastante incrível e fantasiosa, através dos anos as aventuras da equipe tornaram-se metáfora para situações e dificuldades bastante reais – como o racismo, o homossexualismo, a opressão e o preconceito. Assim, aquele grupo de pessoas que voavam, liam pensamentos e soltavam laser pelos olhos tornou-se muito mais “séria” e “realista” do que os outros super-heróis.

Desse modo, “Heroes” se distancia do trabalho de Moore e se aproxima do trabalho de Claremont; e, ainda assim, convence como uma história de “super-heróis no mundo real”. Por quê?

Em primeiro lugar, pelo multiculturalismo. A idéia de pessoas de todos os tipos descobrindo poderes especiais tem muito mais atrativos para o “globalizado” mundo moderno do que heróis como o Capitão América ou mesmo o Super-Homem, vistos por alguns como representantes da hegemonia estadunidense, que anda em baixa até nos próprios EUA.

Em segundo lugar, mais do que os personagens psicopatas de Moore, e mais do que os fabulosos X-men originais, a trupe de “Heroes” convence como um grupo de pessoas comuns.

E, nesse aspecto, justifica-se a terceira comparação inevitável – os personagens de “Heroes” são mais humanos que os personagens de “Lost”. Pois, por melhor que seja a série de J. J. Abrams e Damon Lindelof, todo mundo se pergunta qual a probabilidade de juntar num mesmo avião um número tão grande de pessoas bonitas, musculosas, e com os passados mais dramáticos e misteriosos que se possa imaginar? Quem era realmente uma “pessoa comum” antes de cair naquela ilha?

Os “Heroes” são menos heróicos e mais perdidos do que os personagens de “Lost”. Alguns anseiam por salvar o mundo, sem saber exatamente como, mais outros estão mais preocupados em preservar sua imagem, salvar seu casamento, pagar suas contas, e até fugir dos criminosos e vilões que os perseguem. E é muito mais fácil para o espectador identificar-se com o novo seriado, em que os recém-descobertos super-poderes começam a causar problemas em suas famílias e empregos, do que com os acidentados de “Lost” ou mesmo os super-psicopatas de Moore.

Do mesmo modo, “Heroes” lida muito bem com outro conceito “difícil” das hq’s: a inverossimilhança da existência dos chamados “super-vilões”, com seus planos mirabolantes para dominar o mundo. Como no mundo real, os vilões de “Heroes”, assim como os mocinhos, estão apenas tentando fazer o que entendem ser o melhor para o mundo – o que os separa é apenas sua disposição em sacrificar a si mesmos, ou aos outros, em troca de seus “nobres” e “justos” ideais. Uma linha tênue que certamente será cruzada por muitos dos protagonistas.

É inegável que a série é cheia de lugares-comuns: agências secretas lideradas por vilões engravatados, japoneses incrivelmente inocentes, donzelas em apuro, uma ponta de Stan “The Man”, etc. No entanto, a forma com que o seriado torce e modifica os estereótipos é justamente seu maior trunfo.

Os poderes dos super-heróis, por exemplo, nem sempre são compatíveis com seus portadores. Enquanto em obras como “X-Men”, “Os Incríveis” e “Ricardo III” as alterações no corpo dos personagens são reflexos de sua personalidade, em “Heroes” muitas vezes ocorre justamente o contrário. Um exemplo: nos gibis dos X-men, Wolverine é um sujeito casca-grossa, que fuma, bebe, e não leva desaforo para casa, e seu corpo é capaz de se regenerar – tão invulnerável como seus nervos de aço. Em “Heroes”, há uma garota que tem os mesmos poderes que Wolverine – e é justamente a mais frágil e amedrontada de todas, que tem de ser salva repetidamente pelos outros protagonistas. O “Hero” mais heróico, que sonha em salvar o mundo, tem no início do seriado o poder mais “café-com-leite” e dependente; e o “hero” com o poder mais fantástico – controlar o tempo e o espaço - é o mais “nerd” e ingênuo de todos! Isso para não falar de outro personagem que, apesar de conseguir voar, não é capaz de “tirar os pés do chão” para perceber no tamanho da confusão em que ele está envolvido.

Para os fãs do gênero, o seriado traz uma série de referências. A começar pelo nome do protagonista do primeiro episódio, “Peter Petrelli”, um indisfarçável tributo ao primeiro e original “heróis com problemas de um cara comum”, Peter Parker – o Homem-Aranha. Outro personagem, Hiro Nakamura, é um autêntico fã de quadrinhos e sci-fi, comparando-se constantemente ao Super-Homem, Homem-Aranha ou Dr. Spock – é o personagem mais simpático de todos, talvez por querer retratar os possíveis fãs do seriado. E um terceiro personagem, além de pintor, é um desenhista de quadrinhos – que são discretamente retratados como uma forma de arte. Aliás, em http://www.nbc.com/Heroes/novels/, há uma série de “graphic novels” contando muitas histórias sobre os personagens que não foram mostradas na telinha. É coisa para fãs, mesmo.

Minha referência preferida, que não vai passar despercebida nem por aqueles que nunca tocaram num gibi, é que lá pelo décimo episódio um novo personagem, Gabriel Gray, mostra a cara – ele parece demais com o Super-homem do cinema, mas por dentro é justamente o oposto do kriptoniano!

Conforme o seriado evolui, tudo indica que os heróis vão se tornar cada vez mais poderosos, realizando todo seu potencial. Nesse caso, corre-se o risco de transformar um divertido drama sobre pessoas comuns que adquirem poderes especiais numa série de ação sobre humanos super-poderosos, com resultados imprevisíveis.

Aconteça o que acontecer, as primeiras duas temporadas de “Heroes” situam-se na fase mais dramática e interessante na chamada “saga do herói”, popularizada por Joseph Campbell – a fase em que o ser humano comum escolhe ser extraordinário, apesar de todos os perigos que isso possa acarretar – e talvez por isso mesmo seja uma das coisas mais interessantes que surgiu na televisão nos últimos tempos.

“Heroes” estreou no Universal Channel em 2 de março. Com sorte, estréia logo na Record. Vale a pena. Hoje em dia, pode ser mais divertido do que ir ao cinema.


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