quarta-feira, março 07, 2007

Fables



Finalmente eu li Fables. Uma das séries mais faladas nos últimos anos, o título da Vertigo/DC lançado em 2003, narra à vida dos personagens oriundos das mais diversas fábulas e contos de fada vivendo em Nova York nos dias de hoje. Como? Tudo obra da mente de Bill Willingham, criador e escritor da série.

Expulsos de sua terra natal por um inimigo conhecido apenas como “O Adversário”, os personagens se refugiam em Nova York onde estabelecem uma comunidade clandestina chamada de Fabletown. Willingham deita e rola usando os personagens e construindo a sociedade onde eles agora vivem. Aqueles que possuem forma humana, ou que conseguem assumir uma vivem na parte urbana de Fabletown, os demais que são animais ou criaturas vivem em uma parte da comunidade localizada no interior do estado, em uma espécie de fazenda.

Eu não vou falar aqui da história em si, pois os TPBs (já são 8) estão aí pra quem quiser ler, e sim das soluções de Willingham que, na minha opinião são geniais (procure no Wikipedia se quiser saber mais sobre a história e os personagens da série, mas eu ainda sugiro ler os gibis). A idéia de trabalhar com personagens de fábulas traz uma série de benefícios, sendo a liberdade que o fato destes personagens não estarem mais presos a ninguém por direitos autorais traz, a maior delas. Willingham pode fazer o que quiser com eles, inclusive matá-los. Mas ele mesmo criou um freio para essa tentação, pois os personagens mais queridos do público leitor de fábulas e contos de fada não morrem, ou são incrivelmente difíceis de matar. Além disso, Fables não tem relação nenhuma com a cronologia da DC, o que permite que seu autor tenha total liberdade para trabalhar todo o universo da história. E Willingham não desperdiça nada, usando todas as oportunidades que as histórias lhe oferecem para tornar ainda mais interessante a trama. Por exemplo (se você não leu a primeira saga de Fables, talvez queira pular as próximas linhas): Snow White (Branca de Neve) é atingida na cabeça por um tiro do rifle de Goldilocks (Cachinhos Dourados) no fim de uma edição, o quê, dado o que já havia acontecido na história, levou o leitor a crer que ela havia morrido. Só na edição seguinte descobrimos que os personagens mais populares não podem morrer pois são muito queridos pelos humanos, o que leva Snow White a uma longa e dolorosa recuperação.

A própria estrutura narrativa de Fables é muito bem bolada. As histórias são divididas em arcos como a maioria dos gibis de hoje, mas estes arcos são fechados pelos temas que eles abordam e geralmente envolvam personagens que muitas vezes não voltam mais. Ou, em outros casos, introduzem novos personagens. Além disso, Willingham vai aos poucos revelando o que aconteceu com todos os personagens desde que nós os vimos pela última vez, nas fábulas ou contos originais, até sua situação atual. Mais ou menos nos moldes do que o Lost faz muito bem, mas com menos freqüência do que o seriado de TV. Assim, conforme acompanhamos a trama principal, Willingham nos apresenta os desdobramentos das histórias de cada personagem e o caminho que este tomou para chegar a Fabletown. Na maioria das HQs quando os arcos de história terminam, geralmente temos que aturar 2 ou 3 edições de histórias fechadas onde o desenhista principal tem folga, ou a temática das histórias nada acrescenta a narrativa geral do personagem. Ao invés de aproveitarem a oportunidade para abordar eventos ou histórias mais concisas, acabam por desperdiçar espaço só para encher lingüiça até o próximo arco de histórias. Willingham, por outro lado, faz uso dessas edições “entre-arcos”, para contar passagens mais extensas da vida dos personagens.

Além de tudo isso Willingham abusa da longevidade dos personagens, o tempo realmente passa na história, apesar de ninguém envelhecer realmente (pois eles são personagens de contos de fada, lembra?). Diferentemente da maior parte dos gibis, o tempo passa e as coisas realmente acontecem. Filhos nascem, pessoas perdem e ganham emprego e, eventualmente, morrem. E o autor ainda brinca com a própria relação entre os contos, o Príncipe Encantado, por exemplo, é o mesmo para todas as histórias e consequentemente para todas as “donzelas”. Sendo assim, seu casamento com Snow White durou até que ele foi pego na cama com a irmã dela, pois sua infidelidade é tão certa quanto sua capacidade de conquista. Ao se separar de White ele se casou com a Bela Adormecida, de quem se separou para casar com Cinderella, sua útlima ex-esposa. De todos os personagens da série, Bigby Wolf (ou Big Bad Wolf, o nosso Lobo Mau) é o meu preferido. Seus crimes do passado foram perdoados e ele assumiu o cargo de xerife de Fabletown, mas jamais pode pisar na fazenda, lar dos “animais” das fábulas. Ele é uma espécie de Wolverine dos contos de fada, mas um pouco mais eficaz e perigoso.

E não é só no texto e na criação que Fables se destaca, a arte também é muito bem cuidada. Na maior parte das histórias é Mark Buckingham que cuida dos traços. Ele pode não ter um dos mais chamativos estilos, mas seu desenho combina muito bem com a narrativa desses contos de fada modernos. Além de Bucknigham diversos nomes já desenharam Fables, com destaque para o veterano P. Craig Russel. Mas é nas capas que a arte de Fables é levada a outro patamar. Desde o início, o responsável pelas capas de Fables é James Jean. Nascido em Taiwan, mas criado nos EUA, Jean é um ilustrador formado pela School of Visual Arts de NY. Desde que se formou ele vem trabalhando com quadrinhos como capista para DC, e em Fables encontrou um palco perfeito para suas habilidades. Com um desenho belíssimo e um profundo entendimento de cores, Jean faz da ousadia sua marca, mas uma ousadia pautada pela sutileza quase etérea. Mesclando diferentes técnicas ele confere a suas peças um visual mágico e perigoso ao mesmo tempo, digno de qualquer conto de fadas, e sua ousadia traz esse conto de fadas para a modernidade. Seja na capa das HQs ou dos TPBs, James Jean é sem dúvida um dos grande atrativos dessa série imperdível para qualquer leitor interessado em boas histórias.

terça-feira, março 06, 2007

Heróis de Carne e Osso


O seriado “Heroes”, que retrata o drama de pessoas comuns repentinamente transformados em super-humanos, mostra mais uma vez que a televisão já alcançou o cinema em criatividade e interesse – agora, na seara dos quadrinhos




A moda de super-heróis já vem fazendo sucesso nos cinemas há alguns anos – com resultados que variam do genial ao desastroso. A onda serviu para dar mais respeitabilidade e visibilidade aos quadrinhos, que hoje ninguém mais vê como “coisa de criança” se parecer ignorante, além de fornecer novos recursos para a cinematografia americana, que, há tempos sem roteiros que prestem, tem sobrevivido na base de adaptações, refilmagens, seqüências e “prequels” de tudo quanto é tipo. Quem acompanhou o Oscar de 2007 sabe do que eu estou falando.

Não foi fácil, é claro, transferir para o cinema um gênero tão intrinsecamente ligado à sua mídia original. Nesse aspecto, uma adaptação televisiva, apesar de trazer suas próprias dificuldades, traz também alguns recursos das hq’s que encontram melhor utilização na telinha, como o velho bordão “to be continued”, ou seja, dividir a história em vários capítulos que acabam sempre num clímax, fazendo o espectador esperar ansiosamente pela próxima edição.

Vencidos os primeiros obstáculos, descobriu-se que o filão era bastante lucrativo para todos os envolvidos.

Essa nova galinha dos ovos de ouro, no entanto, foi tão espremida pelos gananciosos produtores de Holywood que muitos já apontam o seu esgotamento. O seriado “Heroes” surge, assim, para tratar de um tema que já foi inventado, esgotado, reinventado e revolucionado várias vezes, não só nos gibis como, agora, nos cinemas – e, num território tão explorado, é impossível falar da série sem citar algumas de suas muitas influências ou cair no inevitável lugar-comum das comparações.

O enredo de “Heroes” é bastante simples: um grupo de pessoas, até então sem nada de especial, começa a descobrir poderes sobrenaturais, como levitação, regeneração, telecinese, etc., o que afetará não só suas vidas particulares, mas, eventualmente, o destino da espécie humana.

Muitos têm dito que a idéia de “Heroes” deve muito ao “Watchmen” de Alan Moore, a primeira “graphic novel” que conseguiu mostrar de maneira convincente como seria o mundo real se os super-heróis existissem de verdade. Na obra de Moore, não apenas os “poderes” dos heróis são bastante ordinários – um depende de tecnologia avançada, dois se destacam apenas pelo comportamento violento, e outro deve seu sucesso ao seu brilhante intelecto (e é o primeiro a perceber quão idiota é a idéia de um monte de adultos usando fantasias de carnaval, quando existem problemas mais urgentes, como a guerra fria, a serem resolvidos) – como também suas personalidades cheias de falhas, sendo os personagens inseguros, confusos, indiferentes, fascistas ou simplesmente psicóticos.

Realmente, há alguma semelhança. No entanto, parece-me que uma comparação mais pertinente - e óbvia - seria com os X-men originais. De fato, a idéia de seres humanos comuns, de várias raças, nacionalidades, etnias e culturas diferentes, descobrindo que super-poderes em seu código genético e juntando-se para combater o mal era a força original da equipe criada por Stan Lee e Jack Kirby, e consagrad por Chris Claremont, o que foi abertamente reaproveitado em “Heroes”.

O interessante é que, embora originalmente os X-men fossem uma equipe bastante incrível e fantasiosa, através dos anos as aventuras da equipe tornaram-se metáfora para situações e dificuldades bastante reais – como o racismo, o homossexualismo, a opressão e o preconceito. Assim, aquele grupo de pessoas que voavam, liam pensamentos e soltavam laser pelos olhos tornou-se muito mais “séria” e “realista” do que os outros super-heróis.

Desse modo, “Heroes” se distancia do trabalho de Moore e se aproxima do trabalho de Claremont; e, ainda assim, convence como uma história de “super-heróis no mundo real”. Por quê?

Em primeiro lugar, pelo multiculturalismo. A idéia de pessoas de todos os tipos descobrindo poderes especiais tem muito mais atrativos para o “globalizado” mundo moderno do que heróis como o Capitão América ou mesmo o Super-Homem, vistos por alguns como representantes da hegemonia estadunidense, que anda em baixa até nos próprios EUA.

Em segundo lugar, mais do que os personagens psicopatas de Moore, e mais do que os fabulosos X-men originais, a trupe de “Heroes” convence como um grupo de pessoas comuns.

E, nesse aspecto, justifica-se a terceira comparação inevitável – os personagens de “Heroes” são mais humanos que os personagens de “Lost”. Pois, por melhor que seja a série de J. J. Abrams e Damon Lindelof, todo mundo se pergunta qual a probabilidade de juntar num mesmo avião um número tão grande de pessoas bonitas, musculosas, e com os passados mais dramáticos e misteriosos que se possa imaginar? Quem era realmente uma “pessoa comum” antes de cair naquela ilha?

Os “Heroes” são menos heróicos e mais perdidos do que os personagens de “Lost”. Alguns anseiam por salvar o mundo, sem saber exatamente como, mais outros estão mais preocupados em preservar sua imagem, salvar seu casamento, pagar suas contas, e até fugir dos criminosos e vilões que os perseguem. E é muito mais fácil para o espectador identificar-se com o novo seriado, em que os recém-descobertos super-poderes começam a causar problemas em suas famílias e empregos, do que com os acidentados de “Lost” ou mesmo os super-psicopatas de Moore.

Do mesmo modo, “Heroes” lida muito bem com outro conceito “difícil” das hq’s: a inverossimilhança da existência dos chamados “super-vilões”, com seus planos mirabolantes para dominar o mundo. Como no mundo real, os vilões de “Heroes”, assim como os mocinhos, estão apenas tentando fazer o que entendem ser o melhor para o mundo – o que os separa é apenas sua disposição em sacrificar a si mesmos, ou aos outros, em troca de seus “nobres” e “justos” ideais. Uma linha tênue que certamente será cruzada por muitos dos protagonistas.

É inegável que a série é cheia de lugares-comuns: agências secretas lideradas por vilões engravatados, japoneses incrivelmente inocentes, donzelas em apuro, uma ponta de Stan “The Man”, etc. No entanto, a forma com que o seriado torce e modifica os estereótipos é justamente seu maior trunfo.

Os poderes dos super-heróis, por exemplo, nem sempre são compatíveis com seus portadores. Enquanto em obras como “X-Men”, “Os Incríveis” e “Ricardo III” as alterações no corpo dos personagens são reflexos de sua personalidade, em “Heroes” muitas vezes ocorre justamente o contrário. Um exemplo: nos gibis dos X-men, Wolverine é um sujeito casca-grossa, que fuma, bebe, e não leva desaforo para casa, e seu corpo é capaz de se regenerar – tão invulnerável como seus nervos de aço. Em “Heroes”, há uma garota que tem os mesmos poderes que Wolverine – e é justamente a mais frágil e amedrontada de todas, que tem de ser salva repetidamente pelos outros protagonistas. O “Hero” mais heróico, que sonha em salvar o mundo, tem no início do seriado o poder mais “café-com-leite” e dependente; e o “hero” com o poder mais fantástico – controlar o tempo e o espaço - é o mais “nerd” e ingênuo de todos! Isso para não falar de outro personagem que, apesar de conseguir voar, não é capaz de “tirar os pés do chão” para perceber no tamanho da confusão em que ele está envolvido.

Para os fãs do gênero, o seriado traz uma série de referências. A começar pelo nome do protagonista do primeiro episódio, “Peter Petrelli”, um indisfarçável tributo ao primeiro e original “heróis com problemas de um cara comum”, Peter Parker – o Homem-Aranha. Outro personagem, Hiro Nakamura, é um autêntico fã de quadrinhos e sci-fi, comparando-se constantemente ao Super-Homem, Homem-Aranha ou Dr. Spock – é o personagem mais simpático de todos, talvez por querer retratar os possíveis fãs do seriado. E um terceiro personagem, além de pintor, é um desenhista de quadrinhos – que são discretamente retratados como uma forma de arte. Aliás, em http://www.nbc.com/Heroes/novels/, há uma série de “graphic novels” contando muitas histórias sobre os personagens que não foram mostradas na telinha. É coisa para fãs, mesmo.

Minha referência preferida, que não vai passar despercebida nem por aqueles que nunca tocaram num gibi, é que lá pelo décimo episódio um novo personagem, Gabriel Gray, mostra a cara – ele parece demais com o Super-homem do cinema, mas por dentro é justamente o oposto do kriptoniano!

Conforme o seriado evolui, tudo indica que os heróis vão se tornar cada vez mais poderosos, realizando todo seu potencial. Nesse caso, corre-se o risco de transformar um divertido drama sobre pessoas comuns que adquirem poderes especiais numa série de ação sobre humanos super-poderosos, com resultados imprevisíveis.

Aconteça o que acontecer, as primeiras duas temporadas de “Heroes” situam-se na fase mais dramática e interessante na chamada “saga do herói”, popularizada por Joseph Campbell – a fase em que o ser humano comum escolhe ser extraordinário, apesar de todos os perigos que isso possa acarretar – e talvez por isso mesmo seja uma das coisas mais interessantes que surgiu na televisão nos últimos tempos.

“Heroes” estreou no Universal Channel em 2 de março. Com sorte, estréia logo na Record. Vale a pena. Hoje em dia, pode ser mais divertido do que ir ao cinema.


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