domingo, julho 01, 2007

Sobre sonhos, filmes e crianças em perigo

Quando viver é mais importante do que vencer ou perder


Uma criança numa situação difícil pode render um belo filme – que o digam Cinema Paradiso, A Língua das Mariposas e o Império do Sol, entre tantos outros. Também pode render indicações ou premiações ao Oscar de melhor filme estrangeiro, o que ocorreu com Kolya, Caráter, A Vida é Bela e Central do Brasil.

Embora eu não tenha assistido à cerimônia do Oscar este ano, confesso que torci secretamente pelas minhas crianças favoritas no cinema de 2006: Abigail Kathleen Breslin e Ivana Baquero, as protagonistas de Pequena Miss Sunshine e O Labirinto do Fauno, respectivamente. Infelizmente, nenhum deles ganhou o prêmio de melhor filme ou melhor filme estrangeiro, mas ganharam vários prêmios “secundários” que fizeram valer a torcida.

Em Pequena Miss Sunshine, conta-se a história de uma menina, Olive, que sonha em vencer um concurso de beleza. Embora sua esperança seja inabalável, desde o início o filme mostra que ela praticamente não tem chance: míope e gordinha, Olive tem que contar com a ajuda de uma kombi que mal funciona para chegar à Califórnia, acompanhada por uma família completamente transtornada, incluindo um irmão que fez voto de silêncio, um tio suicida, um avô viciado em heroína e um pai que é um guru de auto-ajuda fracassado.

Trata-se de uma comédia ácida, com atores verdadeiramente fantásticos, além de uma crítica feroz ao “american way of life” e da obsessão bela beleza e pela vitória que o caracterizam – nesse aspecto, muito mais interessante do que “Beleza Americana” e bem menos deprimente do que "Felicidade".

O Labirinto do Fauno traz como protagonista a pequena Ofélia, que se encontra numa situação ainda mais desesperadora que a de Olive. Após ser levada por sua mãe grávida para a casa do padrasto, um cruel militar franquista, em plena guerra civil espanhola, ela fica praticamente esquecida numa casa antiga e enorme, ocupada por fascistas e ameaçada por guerrilheiros, com sua mãe no leito de morte. E tudo que Ofélia tem para apoiá-la é o mundo de conto de fadas, com faunos e princesas, que existe em sua imaginação – embora possa ser mais real do que aparenta.

Além do roteiro excelente, o filme impressiona pelos efeitos especiais, principalmente quando retrata o mundo da imaginação de Ofélia. E cada aspecto do mundo fantasioso reflete um aspecto do mundo real – desde o rangido misterioso das coisas antigas até os monstros que se alimentam do sangue de criaturas inocentes.

É um filme triste, trágico e violento – embora, como tenha observado o diretor, traz uma violência realista; ao contrário de outros filmes sanguinolentos, nesse a violência tem conseqüências.

E, se você ainda não viu os filmes, talvez seja o caso de parar de ler por aqui (e ir assistí-los!).

Apesar de suas diferenças, ambos tratam do mesmo tema: a heróica luta entre a inocência davídica dos sonhos e a dureza tirânica do mundo real. Ou, de forma mais específica, da passagem da infância para a vida adulta, que inclui de forma quase inexorável a destruição – ou ao menos o aprisionamento, o que pode ser pior – do que há de mais puro nas crianças.

E é aí que mora a genialidade dos dois filmes.

Hoje em dia, espera-se do cinema americano “tradicional” que mostre histórias de auto-superação, de como o herói enfrenta condições terrivelmente adversas apenas para fazer triunfar sua força de vontade sobre um mundo perigoso e violento – e grandes filmes foram feitos com essa premissa. Em alguns dos mais interessantes, mesmo a vitória traz uma enorme dose de sacrifício, como nos recentes “300” e “O Grande Truque”, ou mesmo “Kill Bill”.

O lado ruim dessa “ideologia da vitória”, é claro, é como isto vira parte do imaginário norte-americano, que transforma o que deveria ser um saudável gênero ficcional numa crença perigosa de que o mundo deve ser moldado de acordo com os nossos desejos, que são muito menos altruístas do que gostaríamos de acreditar.

Tal pensamento gera tanto tolices cinematográficas aparentemente (e só aparentemente) inofensivas como “Quem Somos Nós?” (baboseira pseudocientífica inconseqüente, típica de um país que proíbe o ensino de Darwin em alguns estados e é o lar da Cientologia) e “O Segredo” (pérola do “misticismo de auto-ajuda” – se você realmente acreditar, você vai conseguir!) quanto ideologias mais perigosas que dominam a cabeça dos estadunidenses (e eu não vou falar aqui de George Bush porque ninguém agüenta mais o sujeito).

A verdade que a vertente mais “tolinha” dessa ideologia parece ignorar é que o mundo é um lugar hostil aos nossos sonhos, e a realidade tem suas próprias leis, totalmente alheias às nossas vontades.

Na sua vertente mais violenta, tal ideologia divide o mundo entre aqueles que conseguem impor a sua vontade – os “vencedores” – e aqueles que “fracassam” no intento, e não conseguem ser ricos, fortes ou bonitos como deveriam – os perdedores.

E é contra essa ideologia que Ofélia e Olive têm que lutar para não desistirem dos seus sonhos, ou seja, contra a auto-ajuda tola e o fascismo homicida.

Achou a comparação exagerada? Então assista de novo à cena do “Fauno” em que o padrasto de Ofélia proclama que os seus adversários afirmam que todos são iguais, mas na verdade há uma diferença – houve uma guerra e os fascistas venceram!

E voltamos para a dialética vencedor/perdedor, presente nos dois filmes e extremamente popular no mundo moderno.

E o que acontecerá com as meninas, no final? Será que Olive conseguirá tornar-se a “Pequena Miss Sunshine”, contra todas as probabilidades? Será que Ofélia conseguirá tornar-se a rainha das fadas e derrotar o exército fascista?

Ou será que as duas falharão miseravelmente, verão seus sonhos destroçados e serão eternas perdedoras?

Quem não gosta de simplificações poderá ficar feliz ao perceber que talvez a resposta não seja uma coisa nem a outra.

Porque, ao contrário do que acreditam os tolos, o mundo não atende magicamente aos nossos desejos, e é capaz de nos ferir ou até nos matar.

No entanto, dentro de nós, somos maiores do que o mundo – e, se eles forem grandes o suficiente, nenhuma situação poderá arrancar de nossos corações os nossos sonhos.

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